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Incêndios Portugal: ‘Mais doença do que maldade. Quando a floresta arde, também falham os cuidados de Saúde Mental’

Psicólogo forense Rui Abrunhosa defende uma abordagem mais humana e estrutural ao crime de fogo posto. Dos 65 detidos por fogo posto, quase todos têm histórias marcadas por exclusão, solidão e negligência do Estado.

Os incêndios em Portugal estão em destaque ainda para mais agora com as temperaturas acima dos 40 graus em algumas regiões do país.

Na SIC Notícias, Rui Abrunhosa, um Psicólogo forense, deu um extenso parecer, “o que posso dizer é que, realmente, em termos de perfil dos incendiários, sobretudo dos incêndios florestais, que é preciso distinguir dos incêndios urbanos, mas dos incêndios florestais, há uma percentagem relativamente elevada de indivíduos que têm problemas de saúde mental, alguns têm mesmo atrasos cognitivos importantes e também o consumo de álcool, uma coisa que está muito ligada.”

Incêndios Portugal: 'Mais doença do que maldade. Quando a floresta arde, também falham os cuidados de Saúde Mental'

Ainda referiu, “E, portanto, eu também estive a ver as estatísticas, o ano passado, a 31 de dezembro, estavam presos 50 incendiários florestais, dos quais uma era mulher. E o que é que se passa? Neste sentido, as mulheres são muito pouco representativas, há um grupo de jovens, há um perfil de jovens incendiários e depois o outro perfil encaixa mais nesta perspetiva que eu disse há bocadinho relacionada com os problemas de saúde mental, com o consumo de álcool e mesmo com o atraso cognitivo.”

Acerca do perfil do incendiário, ainda dá conta, “ainda pode haver um ou outro indivíduo que seja aliciado por terceiros para pegar o fogo, mas geralmente não acontece isso. Em relação à sua pergunta em concreto, e mesmo se as entidades têm acompanhamento, é evidente que, sendo estes indivíduos diagnosticados com algum problema de saúde mental, esse acompanhamento existe por parte, por exemplo, quando eles estão nos serviços prisionais, portanto por parte dos serviços competentes, e quando estão cá fora, pelos serviços de saúde mental.

E rematou, “a grande questão, eventualmente, é que se estes indivíduos vêm para casa, têm que tomar medicação, mas não a tomam, isso é realmente depois um problema, no sentido de prevenir as ocorrências. Há, aliás, uma circunstância que leva a que estes indivíduos possam estar detidos em instituições durante o período chamado, portanto, o período mais crítico dos fogos. E isso acontece, portanto, resta saber agora, destes que, entretanto, foram detidos, quantos é que são, eventualmente, reincidentes, quantos é que já têm algum cadastro por este tipo de problemas, e quantos é que são novos indivíduos. Isso realmente não está muito bem estudado.”

JORNALISTA DO EXPRESSO, REVELA O SEU ESTUDO

“No artigo que escrevemos no Expresso, na última edição, escrevemos que havia 65 pessoas condenadas e detidas que estão nas prisões pelo crime de incêndio florestal. Também, comparativamente com o ano anterior, o número era ligeiramente superior, não muito, mas ligeiramente superior. E sim, falámos com algumas pessoas do meio dos estabelecimentos prisionais, há uma maior sensibilidade por parte dos juízes à aplicação de penas efetivas. Os números comparativos dos últimos 11 anos são, de facto, diferentes.

Havia cerca de 20 detidos em 2012, 2013, 2014. Os números andavam nas casas das duas, três dezenas e agora já aumentaram substancialmente. Portanto, sim, existe maior sensibilidade de facto a penas concretas, ou seja, de haver aplicação de penas concretas.

E, portanto, é um fenómeno que também a justiça está a par e, obviamente, todos os verões repetem-se estas histórias, se repetem, infelizmente, este fenómeno. E é normal que também os juízes, como seres humanos, como pessoas que veem o espaço florestal a ser ardido e consumido pelas chamas, que também sejam sensíveis e queiram aplicar penas”, referiu Hugo Franco.

Entre o dolo e a negligência: não há só incendiários

Abrunhosa aponta o dedo à forma como se interpreta a origem das chamas. “Há uma diferença entre os fogos que são pegados propositadamente e aqueles que resultam de negligência”, explica, acrescentando que, frequentemente, os incêndios mais devastadores têm origem negligente. Ainda assim, admite: “Quando há ignições à meia-noite ou de madrugada, dificilmente serão casos por negligência”.

O psicólogo defende que o foco tem de estar na prevenção e na gestão adequada da floresta. “A grande questão é o ordenamento florestal. Vários especialistas já disseram isso. Não é apenas um problema de incendiários”, frisa. Para Abrunhosa, olhar para o futuro implica uma estratégia abrangente e sustentada: “Temos que pensar em termos mais amplos sobre como gerimos a nossa floresta”.

Perfil dos incendiários: mais fragilidade do que malícia

Sobre a possibilidade de agravamento das penas, atualmente com uma moldura que vai de 1 a 8 anos de prisão, Rui Abrunhosa é perentório: “Isso é um engano. É como defender a pena de morte e achar que assim se reduzem os crimes mais graves”. Segundo o especialista, a punição tem de ser proporcional à gravidade do ato, mas alerta que, muitas vezes, quem comete este tipo de crime tem limitações cognitivas e precisa de acompanhamento. “É mais importante termos os médicos de família e os colegas psiquiatras atentos, para perceber se aquela pessoa específica pode vir a reincidir”, explica.

A reinserção: regresso discreto à comunidade

Quanto à reinserção social de quem é condenado por fogo posto, Abrunhosa mostra algum ceticismo. “Na maior parte dos casos, estas são pessoas indiferenciadas, que acabam por regressar a trabalhos agrícolas ou às suas zonas de origem”, refere. E conclui com uma reflexão crítica sobre a relação entre penas mais duras e a criminalidade: “As penas endureceram, mas o número de incendiários aumentou. Não há uma relação direta. Isso são explicações demasiado simplistas para um problema muito mais complexo”.

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