Isabela Figueiredo, escritora e vencedora do ‘Prémio Urbano Tavares Rodrigues’, com o livro ‘A Gorda’, veio a público, neste domingo, 26 de Outubro, tecer considerações acerca do do concurso líder de audiências na RTP1, apresentado desde 29 de Setembro de 2003 por Fernando Mendes.
Aliás, são centenas ou até mais as vezes em que, ao longo destes 22 anos, o antecessor do ‘Telejornal’ colocou a televisão pública no pódio e até no topo do Top dos programas mais vistos do dia.
A colunista do ‘Expresso’ tem um leque variado de canais, mas prefere assistir ao ‘game show’. Antes de uma dieta rigorosa, Fernando Mendes era carinhosamente apelidado de ‘O Gordo’. Ironicamente, Isabela Figueiredo ganhou um prémio de 7500 euros pela autoria de ‘A Gorda’. “Maria Luísa, a heroína do romance, é uma bela rapariga, inteligente, boa aluna, voluntariosa e com uma forte personalidade. Mas é gorda”.
Na crónica publicada online, intitulada de “As minhas normais utopias”, a também jornalista, de 62 anos, dá um verdadeiro arraso ao ‘Preço Certo’: “Quando o sol se põe, gosto de me sentar no sofá a preparar a noite. Aquilo que quero ler e escrever. Gosto desse momento, antes das notícias na TV, no qual recolho ao ninho e fico no meu silêncio, só comigo. Ligo a televisão, mas tiro-lhe o som. Bastam-me os movimentos e as cores para saber que há gente lá fora e o mundo não acabou”.
No entanto, enquanto prepara a noite, a televisão de Isabela está sintonizada na RTP1: “De vez em quando desvio o olhar do écran do computador, levanto a cabeça e lá está o senhor Fernando Mendes, do ‘Preço Certo’, ajudando um senhor idoso a descer da plateia ou a receber presentes das juntas de freguesias, aproveitando para atestar a qualidade dos queijos e enchidos ou a ajudar uma senhora a virar uma grande roda. Também vai dançando, brincando com os concorrentes com uma certa ternura. Os assistentes aparecem para apresentar a montra dos prémios, fazendo-lhes festinhas. A Leika está neste momento a massajar um assento de moto, e um rapaz, cujo nome desconheço, prime um botão de um eletrodoméstico desligado e sorri. Também dançam. Todos sorriem, todos dançam. Há de vir um momento musical e brejeiro. Que alegria!”
Assiste, mas em silêncio. “Vejo, mas nada ouço. Não aguento o chinfrim. Suporto o ‘Preço Certo’ há mais de 20 anos. Sempre foi mau. Salva-se a autenticidade do público. Portugueses reais. Parecem os familiares da terrinha, que visitamos no Natal. Gente boa que mata o seu porco quando chega a altura correta do ano”, refere.
“Quanto ao ‘Preço Certo’ pergunto-me diariamente e sem sucesso sobre a função didática do programa. Trata-se da adivinhação de preços de objetos. Quanto custa este tira-gorduras? E estes óculos de sol? E esta magnifica colcha de cama da marca x? E o carro, senhores, este pujante bólide com duas portas, quase sem bagageira e 950 de cilindrada, no qual uma pessoa pode ir à feira ao sábado de manhã? Na verdade, é um programa feito para consumidores encartados”, opina a criadora de ‘A Gorda’.
E deixa uma sugestão a José Fragoso e à Direção de Programas da RTP: “Que tal descontinuar-se o conteúdo e fazer um programa de música e teatro para entreter antes do jantar? Qualquer coisa construtiva. Uns documentários do mundo que não conhecemos, penso, ingenuamente, como se não conhecesse o poder das audiências no que respeita ao mercado da publicidade. É provável que as pessoas não queiram programas construtivos, mas festa”.
Volta atrás, de novo, e prossegue: “(…) já se chamou ‘Preço Certo em Euros’. Parecia um conteúdo facilitador da transição do escudo para euros. Ajudava-nos a associar valores numa moeda desconhecida a artigos comuns. Mas já todos aprendemos que um café custa hoje 200 escudos ou mais, dependendo do valor que o estabelecimento se atribui”.
“Abreviando”, para Isabela Figueiredo, “o ‘Preço Certo’ já não se justifica. Parou no tempo. O valor cultural é nulo. Para que estamos a financiar a nulidade com os nossos impostos? Refiro-me ao principal canal público, mas poderia avançar pelos restantes. A televisão tem falta de qualidade, regra geral”.