A propósito da biografia de Paulo de Carvalho, Luís Osório escreveu um ‘Postal do Dia’ dedicado ao cantor.
“É pornográfico dizer que Paulo de Carvalho é “generoso e solidário” (…) não posso deixar em claro a extraordinária capacidade de Paulo de Carvalho ser seletivo no modo como se lembra ou, se preferirem, no modo como se esquece. O meu pai não o disse em vida. Teve várias oportunidades, mas nunca o disse. Morreu há 11 anos. E morreu também ele celebrado”, começou por referir.
“Nos últimos anos, a doença não o impediu de ser autor de coleções e de livros sobre a história do fado que se tornaram referência. Últimos anos em que reforçou a militância política e tornou-se publicamente visível o combate que liderou contra a discriminação de doentes com SIDA. Ele poderia ter falado e eu também. Apeteceu-me várias vezes, ainda com ele em vida, falar publicamente do que o meu pai sofreu no dia em que Paulo de Carvalho lhe disse que já não podia contar mais com o seu trabalho. Para ele, o Paulo era uma espécie de Deus na terra. Durante muito tempo – muito mais do que dez anos – o meu pai foi o seu agente. Vendia os seus espetáculos. Organizava viagens, técnicos, agendas e vontades. Fazia acontecer. Empenhou-se e esvaziou o seu talento em função do talento do Paulo de Carvalho. Recordo bem o espetáculo “Só Nós Três”, o entusiasmo da preparação, o entusiasmo nas conversas em casa”, prosseguiu.
“O meu pai foi dos primeiros a ser infetado com o VIH. Mas só no início da década de 1990 se tornou impossível esconder que tinha SIDA. No momento em que foi pela primeira vez internado teve de avisar os mais próximos. E avisou também Paulo de Carvalho, o homem para quem trabalhava há longos anos. O Paulo não reagiu como ele esperava que reagisse. Aliás, nunca lhe passou pela cabeça que a relação terminasse ali. Implacavelmente. Friamente. O meu pai tinha SIDA e a partir daí as coisas só podiam piorar. Paulo de Carvalho não podia continuar a pagar-lhe por um trabalho que não sabia se ele poderia continuar a fazer. E o meu pai deixou de ter trabalho e ficou com uma mão à frente e outra atrás. Sem indemnização e quase sem dinheiro. Foi a única vez que o vi chorar ao pé de mim. De desespero, mas também de desilusão pelo homem a quem dedicara os melhores anos da sua vida. Nunca pensara que dali pudesse vir algum tipo de discriminação, o Paulo era o máximo, o melhor cantor português, um amigo, um irmão”, acrescentou.
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“Foi aí que o Tozé Brito e o Manuel Faria, dos Trovante, se chegaram à frente. Todos os meses lhe depositaram dinheiro na conta. E foi aí que o Partido Comunista também se chegou à frente. Nunca o abandonou, nunca o retirou da direção da Festa do Avante e nunca lhe fechou a porta em tudo o que foi surgindo. Impossível esquecer a relação com Ruben de Carvalho. O meu pai viveria para surpresa de todos muitos mais anos. E foi nessas duas décadas que pôde respeitar o seu talento. Muito orgulho pelo que fez, pela coragem enorme de ser um homem inteiro. Nem sempre estivemos próximos, mas nesses últimos anos, sobretudo quando comecei a trabalhar tornámo-nos (finalmente) pai e filho. Só tenho de agradecer ao Paulo de Carvalho pois se ele tivesse apoiado o meu pai, talvez a história tivesse sido diferente”, referiu ainda.
Luís Osório esclareceu que “Nada do que contei até aqui seria suficiente para escrever este postal. Jamais escreveria ou falaria sobre o tema. E jamais voltarei a falar”. “Só que li a biografia oficial de Paulo de Carvalho. E antes de a ler, pensei: ora aí está uma boa oportunidade para uma referência, um parágrafo, uma nota de rodapé sobre o José Manuel Osório, um homem que se dedicou tanto a fazê-lo brilhar. Mas não. Nem uma nota de rodapé ou uma vírgula que fosse. Rigorosamente nada. Como se ele nunca tivesse existido. E ao ler a informação comercial sobre o livro entrou-me pelos olhos este bocadinho, esta desarmante definição sobre Paulo de Carvalho: “Um cidadão de generosidade solidária”. Não aguentei. Porque isso não. Um cidadão de generosidade solidária, não. Isso é pornográfico”, rematou.
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